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Luísa


[Nota: O seguinte texto é da minha autoria mas é inspirado no conto “George”, de Maria Judite de Carvalho. Por questões de direitos de autor, obviamente os nomes serão outros e a história também. Apenas a base e alguns pormenores são inspirados no conto original. Se não quiserem, não precisam de o ler. Espero que gostem!]



Luísa desembarcava mais uma vez no país que, nos últimos quinze anos, se tinha tornado seu. Talvez fosse o sítio onde tinha passado mais tempo em toda a sua vida – claro, só sendo superado pela terra onde tinha nascido e vivido até ser independente o suficiente para sair daquele fim do mundo e correr atrás dos seus sonhos. Edimburgo, a cidade onde vivia, era já a sua casa e tinha mais de si do que qualquer outro sitio no mundo. Talvez se ainda tivesse vinte anos tivesse continuado com a sua vida boémia e com as suas constantes mudanças, mas a idade começava a pesar e com ela trazia a necessidade de estabilidade. 

Ao desfazer as malas, Luísa encontrou a fotografia já velha e de cor amarelada que sempre a acompanhava. Não era mais do que um retrato de uma jovem de dezoito anos, na flor da idade, com uma cabeça cheia de sonhos. Apesar de se tratar de si própria, Luísa mal se reconhecia. Talvez os seus traços fossem os mesmos – embora alguns estivessem já escondidos pelas rugas – mas a expressão no seu olhar mudara radicalmente. Aquela Luísa de dezoito anos era ingénua, inocente, nada sabia da vida. Tinha todos os sonhos do mundo dentro de si e era um diamante ainda em bruto, sem ter sido explorado. Ainda vivia naquele meio fechado onde ninguém a compreendia, mas ainda tinha aquela vontade de viajar por todo o mundo e conhecer tudo aquilo que sempre lhe tinham negado.

A Luísa do presente já pouco ou nada tinha da Luísa do passado. O seu olhar era agora cansado, não só do peso da idade mas de todos os desgostos que tinha sofrido nos entretantos. Já nada restava da ingenuidade e da inocência daquela menina da aldeia. Os sonhos que alimentava tinham já sido realizados, todo o seu potencial já tinha sido explorado e sentia-se totalmente estagnada no tempo. A vontade de conhecer o mundo perdera-se com o passar do tempo e com a certeza de que as pessoas não são assim tão diferentes umas das outras. Luísa já sabia demasiado da vida e isso fazia-a gostar cada vez menos de viver.

A solidão há muitos anos que era a sua única companhia. Ela e os seus quadros. Ainda pintava, mas o seu nome no mercado fora-se perdendo. Outros pintores novos tinham chegado e mostrado o seu talento. Traziam um espirito selvagem, sangue novo e técnicas inovadoras. Ela não queria que achassem que ela se sentia frustrada ou magoada, de algum modo, com isso – pelo contrário, ela ficava feliz por saber que ainda havia jovens interessados na arte – mas a verdade é que, sem a pintura, já nada lhe restava e, cada vez mais, Luísa se afundava no fosso da solidão e da tristeza.

Ao olhar aquele retrato, Luísa teve a certeza de que fez muitas coisas de errado na sua vida e teve a certeza de que, agora com a experiência do alto dos seus quase sessenta anos, se pudesse voltar atrás no tempo faria tudo diferente. Mas a verdade é que a vida era como um comboio que não abrandava e muito menos voltava para trás. A vida passava rapidamente e já nada se podia fazer para remediar os erros do passado. E Luísa tinha cometido tantos…! O maior erro da sua vida tinha sido negar todas as suas raízes. Por mais que não se identificasse com aquela mentalidade, com aquelas pessoas, elas eram a sua família e eram as pessoas que a viram tornar-se mulher – devia-lhes amor, sinceridade, compaixão e nunca lhes deu nada disso enquanto teve tempo. Luísa arrependia-se de não ter aproveitado o amor que os seus pais tinham por si enquanto viviam e, agora que estavam mortos, já de nada lhe valia esse arrependimento. Arrependia-se também de ter querido fazer tudo e viver tudo com demasiada pressa. Ao olhar para trás, havia momentos da sua vida que eram manchas esfumadas e que ela mal se lembrava de ter vivido. Viveu tudo com tanta pressa que não aproveitou, que não saboreou as suas vitórias nem chorou as suas derrotas.

Quase com sessenta anos, já não lhe restava nada. Só o arrependimento e a solidão. Não tinha descendência, poucos eram os amigos, o seu trabalho já quase não era valorizado. Para quê continuar a viver? Luísa não sabia, mas sabia que era demasiado cobarde para pôr termo a todo aquele sofrimento. Restava-lhe aguentar os anos que ainda tinha pela frente com a serenidade com que tinha vivido os últimos e continuar a olhar aquele retrato na esperança que os seus pensamentos contribuam para a sua remissão.



Espero que tenham gostado deste textinho da minha autoria.
Beijinhos




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